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A MENINA, O COIOTE, E AS HISTÓRIAS
artigo [ ]

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por [Bernadete_Piassa ]

2023-10-25  |     | 



A menina que vive em mim está escondida. Quando era pequenininha, escondeu-se embaixo da mesa no aniversário de uma de suas irmãs. Na festa, enquanto as outras crianças se divertiam e comiam brigadeiros, beijinhos e cajuzinhos, ela ficava escondidinha embaixo da mesa. E de tanto ficar lá, não conseguiu mais sair. Escondeu-se do mundo para fugir da incompreensão e das críticas. Escondeu-se para não mais ouvir que era diferente. Seguiu pela vida pequenininha, tímida, séria, no meio de gente que havia aprendido desde sempre a fazer de conta que mesmo a tristeza era uma grande brincadeira. Tinham prática em fingir-se felizes. Ela não.
Naquela casa barulhenta, cheia de irmãs, primos e tios, a menininha tinha hábitos estranhos, que incomodavam demais: gostava de ficar sozinha, de pensar e, acima de tudo, de ler. Quem poderia imaginar uma coisa dessas? Será que havia alguma coisa de errado com ela? Não gostava de bailes, de bagunça, não dava muita importância às roupas. Sonhava com viagens a países exóticos, escrevia muito, lia quando tinha permissão, vivia num mundo de fantasia.
Sua coleção de cartões postais lhe proporcionava horas de alegria. Fingia que estava viajando para lugares distantes, onde cada ser humano podia ser e fazer o que bem entendesse. As paisagens eram de selvas, mares, cidades pitorescas ou desertos. Tinha ouvido dizer que no deserto havia um tal de coiote, um bicho malandrinho. Quem sabe ela podia aprender a sorrir mais, acompanhando as aventuras dele?
Sua matéria preferida na escola era português, mais especificamente, redação. Em casa, lia quando podia. Escondida em algum canto, pois ler era quase como cometer pecado, por alguns momentos era livre, flutuando no mundo de Monteiro Lobato. Aquele sítio do Pica-pau amarelo era realmente o máximo! Mais tarde, descobriria Clarice Lispector, Gabriel Garcia Márquez, Anne Tyler e muitos escritores ingleses e escandinavos que, como ela, gostavam de mistérios, de segredos.
Nas tardes quentes e empoeiradas, às vezes sentava-se no chão de ladrilhos lindamente coloridos e colocava suas bonecas em fila, fazendo de conta que estavam na escola. Na classe, era uma professora muito severa. Suas alunas ficavam sempre de castigo. Tinha aprendido desde cedo que a censura era parte constante da vida.
Outras vezes, ia lá para o fundo da casa, na lavanderia, onde as empregadas passavam roupas ouvindo rádio. Lá, acompanhava, extasiada, as histórias dramáticas de crimes narradas com entusiasmo mórbido pelos radialistas, histórias essas que, mais tarde, povoariam seus contos. Melhor do que essas histórias escabrosas, só mesmo as contadas pelo avô da sua melhor amiga, nas noites em que se reuniam na calçada entre as duas casas, com uma fogueira acesa e as crianças prendendo a respiração de tanto medo. Mas que medinho gostoso, meu Deus!
Sua mãe também era uma boa contadora de histórias. Assustava e fascinava as filhas com as aventuras de João Ratão ou da menina enterrada aos pés da figueira. Mas era a história da Isabel, perseguida pelo bicho papão, que geralmente deixava todo mundo sem dormir.
No mundo da fantasia, a menina era feliz. No mundo real, não entendia como sua mãe podia comparar todas as filhas, invariavelmente achando uma falha, apontando um problema impossível de ser corrigido. Uma de suas irmãs, bonita, exuberante, sempre pronta para ir às festas, parecia viver uma existência paralela à sua, onde tudo era diferente. Se ela lembrava de uma noite quando uns meninos tinham feito serenata em frente à casa onde moravam, sua irmã jurava que eram três ou mais noites. Se ela sentia que uma das suas primas era cruel e vivia caçoando dela, sua irmã respondia que ela só via o lado negativo das coisas, que era de brincadeira. Muitas vezes, duvidava dos próprios sentimentos. Bom mesmo era se esconder embaixo da mesa e, quem sabe, fugir daquele mundo.
A oportunidade apareceu com a possibilidade de ir para um internato no Rio de Janeiro. Quem sabe isso não seria melhor, não encontraria outras meninas também esquisitas? Mal sabia que aquele seria apenas o primeiro passo para deixar para trás aquela cidade parada no tempo, onde nada era o que parecia ser, onde a realidade era apenas uma fantasia.
E assim ela se foi, sem saber que jamais voltaria a morar ali, que seu caminho a levaria a muitos países, carreiras, amores, conquistas, decepções e alegrias. E assim ela se foi, só para descobrir que sempre se sentiria diferente porque, afinal, a diferença não estava no mundo ou nas outras pessoas. Era uma característica dela.
No internato, caro e sofisticado, serviam chocolates bichados de sobremesa. Na hora das refeições, as freiras passavam pelo refeitório com uma varinha e batiam nas costas das meninas que não estivessem sentadas retinhas. Eram ensinadas a bordar lindas toalhas que, na certa, de tão preciosas jamais seriam usadas. Os uniformes eram colocados esticadinhos entre o colchão e as molas da cama, assim não ficariam amassados no dia seguinte. Todos os seus pertences tinham de caber num pequeno armário ao lado da cama. Seus únicos momentos a sós eram quando estava no banheiro.
Para compensar isso tudo, havia os programas da Jovem Guarda aos quais as freiras permitiam que assistissem todos os domingos, quando não saíssem do internato. Nos fins de semana, de vez em quando, ela podia ir para a casa da avó. Mas isso não acontecia sempre, já que sua mãe não queria que incomodasse a família. Foi assim que ela teve a confirmação de que era uma pessoa chata, sempre incomodando os outros.
Aquela era a época de muita música, muitos festivais. E a menina, já mocinha, gostava de ir aos festivais da canção com as tias. Uma delas era sua heroína. Tinha uma perua vemaguete chamada Genoveva e usava uma peruca chamada Jerusa. Dava nome para tudo, vivia fazendo piadas, tinha paciência com aquela menina/mocinha de poucas palavras e levava-a para passear, com seu namorado ou com os amigos, em muitos lugares interessantes do Rio de Janeiro. A outra tia, quase da sua idade, tornou-se sua amiga. Compartilharam bons momentos juntas, principalmente quando ela deixou de ser interna para estudar numa escola francesa e, mais tarde, fazer cursinho para entrar na faculdade de jornalismo.
Pois é claro que ela queria ser jornalista. Como uma jovem que tinha passado a infância sonhando e escrevendo poderia desejar outra coisa? Ser escritora naquela época não era uma profissão. Então, ser jornalista era uma maneira indireta de realizar seu sonho.
E assim os anos foram passando. A menina tornou-se mulher e formou-se em jornalismo. Nos momentos de folga, continuava escrevendo contos que sonhava ver publicados. Já não morava mais no Rio de Janeiro. Tinha se mudado para São Paulo, onde começou de vez sua carreira como jornalista. Trabalhou em várias editoras, em jornais e revistas. Sempre achava muito fácil escrever o que os editores pediam. Difícil mesmo era criar do nada, uma história toda dela, com personagens que nem ela mesma sabia de onde tinham surgido.
As histórias que escrevia eram cruéis, desesperadas. Homens esfaqueavam, mulheres eram estupradas, roubos e maldades eram frequentes. Os personagens eram atormentados. Os cenários eram inóspitos ou descreviam cidades grandes, onde ninguém ligava para ninguém. De onde sairiam essas imagens tão sofridas? Será que essa maldade, parte integral da sua ficção, era reflexo da infância quando ela e as irmãs não paravam para pensar um minuto nos sentimentos das meninas que vinham da fazenda para trabalhar na casa de sua mãe e eram tratadas tão sem consideração? Um dia, seus pais tinham saído e uma delas (Quem seria? Havia tantas!) foi amarrada numa rede e balançada pelas crianças sem parar. Quando os pais chegaram, as crianças foram correndo fingir que dormiam e deixaram a menina/empregada amarrada. De manhã, ela foi encontrada com uma poça de urina embaixo da rede... Essa era só uma das brincadeiras consideradas muito engraçadas. A crueldade era realmente muito divertida.
Sempre acompanhada por suas histórias, de São Paulo ela mudou-se para Nova York com o marido e duas filhinhas. Aprendeu inglês lendo livros infantis para as filhas. Mas a filha menor não gostava tanto das histórias dos livros. Pedia que contasse “uma história da sua boca”. Foi assim que ela deu vida ao macaco Simão que cantava “Meu nome é macaco Simão, sou pequenininho mas sou muito danadinho e ninguém me passa a perna não. Se vem uma onça, eu pego e fujo. Se vem um leão, eu pego e fujo. E ninguém me passa a perna não. Ninguém me passa a perna não.”
A família cresceu. Mais uma linda criança nasceu. Mudaram-se para a França, e com ela foi também a menina do seu passado, aquela que sempre guardava no peito, escondidinha. Uma menina que de repente aparecia para se surpreender com a maneira de viver dos outros. Pois não é que os franceses faziam a maior festa para os cachorros que encontravam nos elevadores e pareciam achar as crianças uma inconveniência? Lembrou-se de um dos cachorros da sua infância que vivia solto no quintal e um dia comeu parte do vestido da sua mãe, antes de ela ir para uma festa. Ninguém pensava, naquela época, em pegar os cachorros e colocar uma coleira para levá-los para passear. Os cachorros corriam pela casa, comiam restos, estavam ali para proteger os donos. Eram paparicados ou, às vezes, judiados pelas crianças. Viviam soltos e jamais seriam encontrados nos braços de uma pessoa, num elevador... Ah, a menina dentro dela se surpreendia com essas modernidades.
Da França, voltaram para a costa leste dos EUA. Com as filhas já na escola, ela pôde escrever mais e acabou publicando algumas crônicas e contos. Uma dessas crônicas descrevia sua frustração por falar mal inglês e não ser entendida numa fila de supermercado quando queria comprar apenas um quilo de presunto. A criança que vivia nela, sempre acusada de ser diferente, como se isso fosse um crime, mais uma vez experimentava, na pele, o que era ser incompreendida.
Suas viagens não pararam por aí. Já casada com outro homem, que aceitava suas estranhezas, mudou-se para o Arizona, para o deserto. Lá, a menina dentro dela admirava-se com os animais selvagens. Ficava horas tirando fotografias dos bichos e surpreendendo-se com a beleza da natureza. Meditava e fazia cursos de meditação, tentando acalmar aquela voz infantil, tão ignorada e perplexa.
Quando uma de suas filha pediu que se mudasse para outro estado, ela e o marido foram felizes, pensando na alegria de estar perto da familia, dos netinhos. Chegando lá, que surpresa: E não é que sua netinha também gostava de histórias? Divirtia-se muito com as peripécias dos cachorrinhos que iam à lua, descobriam um buraco no sótão que os levava a um mundo encantado, tinham problemas mas sempre superavam tudo.
Os viajantes aventureiros nunca param, tem sempre um outro lugar a descobrir. Quem sabe a inquietação venha da infância, de uma necessidade de escapar de tudo. De descobrir um porto seguro onde finalmente se sintam em paz, aceitos pelo que são. Suas viagens finalmente a levaram de volta ao Arizona. Da sua casa, perto das montanhas, ela agora, já senhora, mas sempre menina, contempla a paisagem de cactus, pedras e árvores secas. Os coiotes passam de vez em quando, sem jamais lhe ensinarem o segredo da malandragem pela qual são famosos. Caminham orgulhosos, senhores do seu destino, nesse mundo sereno, onde ninguém critica ninguém. No fim da tarde é a hora dos javalis, que às vezes passam correndo, animados. Ela tudo contempla, deslumbrada. Pela primeira vez se dá conta de que sim, é uma pessoa diferente. Mas é na sua estranheza que reside sua beleza. A menina, dentro dela, sente uma profunda gratidão pela vida. Ela é feliz.
* Crônica originalmente publicada no livro “A criança que existe em mim” , Editora Lendo, São Paulo, SP, Brasil

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